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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Diário do cuidador: Dona Lourdes e seu casamento.

Gravura cortesia de Imagens Grátis.
Olá, amigos e amigas. Tudo bem com vocês? Espero que sim... Hoje começamos um novo tipo de postagem, que vai me ajudar a falar um pouco da minha experiência com meus amigos de mais de sessenta anos, e possibilitar que no caminho eu coloque dicas de bem estar familiar, no tangente aos cuidados com eles. Tenham em mente que nomes e histórias contadas aqui serão trocadas, e misturadas, pois, por conta da confidencialidade de meu trabalho, não cito nada real de nenhum de meus clientes. Baseio-me em fatos reais, que contenham 'ensinamentos' para você que está vivenciando os cuidados com um ente querido. Mas esses personagens aqui não existem de verdade.


Dona Lourdes. Caminho muito pelo meu bairro, e acabo conhecendo muita gente que mora aqui há mais de quarenta anos. Por causa da Candy, as pessoas me param, conversam comigo, e eu acabo, claro, prospectando meu trabalho. Dona Lourdes é uma senhora de 74 anos, sacudida. Mora com seu companheirinho de quatro patas, o Peppe, num apartamento perto da minha casa. Então, por vezes a vejo em seu passeio matinal com o amiguinho, e não é incomum que eu a companhe no passeio, para fofocar. Por conta disso fiquei sabendo de um monte de coisas. Os filhos a visitam pouco, o tempo e o trabalho não permitem que eles deem a atenção que ela gostaria. Então, ela aproveita quando entra alguém disposto a ouvi-la.

Depois de um tempo de convívio social, dona Lourdes resolveu me contratar em situações específicas. Ela ainda anda, faz quase tudo sozinha, necessita de pouca ajuda nas tarefas normais do dia. Mas, um dia me confessou sentir medo de ir sozinha para fora do bairro. Uma vez ela foi a uma grande igreja aqui perto, mas que exigia pegar um ônibus, e acabou se perdendo, por que teve um lapso de distração no meio do caminho. Cinco horas depois de ter saído, seu porteiro estranhou que ela ainda não tivesse voltado pra casa, e contatou seus filhos, que a encontraram vagando na Av. Jabaquara, sem lembrar aonde morava. Depois desse episódio, por medo das broncas que leva dos filhos sempre que algo dá errado, ela deixou de fazer seus passeios mais longos. Eu ofereci meus serviços de acompanhante, e ela aceitou.

Nosso primeiro passeio, tem mais ou menos dois anos, foi ao centro da cidade. Ela gosta de tricotar, e pediu que eu a levasse aos Armarinhos Fernando, lá na rua 25 de Março, para comprar linhas por um preço mais em conta. Naquele ano ela ia fazer agasalhos para dar de presente de Natal para os familiares. Foi um dia agradabilíssimo. Almoçamos no mercadão, nos divertimos, e ela comprou lindas linhas para seus projetos. Na volta, fez questão de me servir o lanche da tarde em sua casa. E entre um cafézinho e um pedaço de bolo, empolgada, pegou um grande álbum de fotos, daqueles antigos, para me mostrar.  Fotos de seu casamento com seu marido coronel. Um orgulho, para ela. Ela me contou histórias de sua mocidade, do ciume excessivo do marido, de ter parado de trabalhar a mando dele, mas de ter sido muito feliz. Um bom homem. Deu pra perceber a saudade que ela sente dele. Dona Lourdes é viúva.

Uns três meses depois, encontrei-me com ela num dos passeios matinais, mais uma vez, e ela, feliz por me ver, me convidou para retornar em sua casa à tarde, para o café. E, em chegando lá no final do dia, entre um café e um pedaço de bolo, ela tirou um álbum de fotos antigo do armário, e me mostrou as mesmas fotos do casamento, e me contou as mesmas histórias, crente de que eu nunca as tinha ouvido.

Em dois anos já passei pelo café com bolo, e sem bolo - depois que descobri minha alergia à glúten - algumas vezes, e em todas elas, escuto as mesmas histórias sobre o casamento, marido ciumento, vida plena e feliz, saudade... Dona Lourdes esquece que já me contou, e eu não gosto de interromper o assunto dela, quando ela me encontra. Nem sempre cobro pelo tempo que passo com ela. Às vezes é só um carinho... Por que ela é muito querida. Ganho outros valores em nossos encontros.

A coisa que mais aprendi com dona Lourdes é que gente precisa de gente. Ela tem Peppe, mas ele não entende o papo dela sobre o casamento e o coronel. Peppe não compreende a saudade que ela sente dos tempos em que seus filhos moravam com ela, e lhe davam atenção, e que seu marido chegava em casa do trabalho todos os dias com um beijo guardado pra ela, flores ou bombons, e ordem. Sim, por que ela faz questão de dizer que o disciplinador da casa era ele. Peppe não elogia o belo vestido com renda portuguesa com o qual ela casou, e nem se espanta quando ela diz que o marido a proibiu de trabalhar, quando conheceu o patrão dela. Ciumento. Peppe não se emociona quando ela fala que a filha, hoje em dia, não fica nem cinco minutos com ela. Que chega lá, uma vez por semana, com compras de mercado, deixa tudo na portaria e vai embora. As duas estão brigadas. A filha quer que dona Lourdes pare de fumar, e as duas vivem se engalfinhando por isso. Dona Lourdes gosta do cigarrinho dela. Pois ela passou um dia inteiro sem fumar, comigo, quando fomos ao Butantã, passear. Ela esqueceu de comprar os cigarros, e só lembrou quando já estávamos lá dentro, com entradas pagas. Sugeri passarmos numa banca ou ponto de vendas quando saíssemos, e ela estava tão animada com o passeio, que aceitou. Dona Lourdes precisa que a filha passe mais tempo com ela, assim, pára de querer a companhia do cigarro. E a filha vai sentir falta desses passeios que eu faço com a mãe, no lugar dela, quando dona Lourdes for ao encontro de seu marido coronel.

Paciência. Pra ouvir a mesma história trocentas vezes, e fingir novidade. Perseverança para convencer o idoso a fazer o que é preciso, sem que ele perceba... Amor... Por que tudo é finito, e a gente tem mania de sentir falta do que já se foi, mas não valorizar o que ainda está entre nós.

Sugeri que a filha levasse a mãe a um geriatra, para ver os esquecimentos. Se eles ficarem mais frequentes, ela vai precisar de um cuidado mais de perto. E merece receber esse carinho dos filhos. Ela não quer morar com a filha, pois elas brigam demais. E o filho não tem atenção, é desligado. Ela prefere ficar no apartamento dela, podendo fumar seu cigarrinho, e dando liberdade para o Peppe. Coisas bobas, coisas que não vão causar um dano irreparável a ninguém. Mas que pra ela são os símbolos de sua liberdade e autonomia. Então, paciência, amor e atenção... É mais importante ser feliz do que ter razão.



JulyN.

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